terça-feira, 26 de maio de 2009

Seattle (Parte 1 - Conto Continuado)

Um segundo após abrir os olhos Kilian sabia que nada seria como antes.

Tudo começou exatamente um ano atrás, quando mais uma vez, dentre tantas outras, Kilian acordou e sabia todos os momentos que o dia lhe guardava. Desligar o despertador ensurdecedor, do barulho mais estridente que ele pôde achar, levantar-se, caminhar pelo quarto em direção ao banheiro enquanto pensa na rotina: trabalho; almoço fast-food, para poupar tempo; trabalho; retornar para casa; jantar sozinho tomando um cerveja morna dada a idade da geladeira e; voltar a dormir. “Deprimente” - pensou ele pela primeira vez em muito tempo.

Kilian chega ao banheiro ainda com os olhos parcialmente fechados, tentando negar a luminosidade da pequena janela do banheiro. Acende logo a luz branca como se pensasse "que tirar o band-aid de uma só vez é melhor do que essa tortura". Respira profundamente, tanto que enrijece por completo suas costas e inclina sua cabeça para traz, termina de abrir os olhos de uma vez e abaixa a cabeça para encarar aquele que lhe faz companhia toda a manhã.

Barba por fazer, mau hálito e cabelo completamente impróprio para ir a um bar e conversar com qualquer mulher, um pouco mais deprimente do que antes. Segundo Kilian, as coisas não poderiam piorar e ele ficou olhando para o espelho por alguns momentos, analisando cada centímetro do que o espelho podia refletir. Algumas marcas na rosto de uma adolescência normal, uma pequena cicatriz próxima ao olho, um troféu adquirido na faculdade, cabelos negros para contrastar com seus olhos cor de mel que, no momento, estavam envoltos em uma esclerótica mais vermelha do que branca. Kilian abaixa a cabeça pensando – “e isto é somente o que o espelho me diz.”

Em sua mente tragédias de uma vida cotidiana. Ele sabia que a realidade diária de todos têm momentos dignos de esquecimento e, que são exatamente estes que nos perseguem por toda a vida, são estes que nos diz quem somos, que criam as amarras da mente, nos deixando presos à mediocridade do sentimento comum do que é certo e errado, bom ou ruim, aqueles que 90% das vezes nos impedem de tentar algo, qualquer coisa. Seguir pelo caminho dos 10% requer a coragem de arriscar ter em sua mente mais uma memória que pode lhe atormentar por toda a eternidade.

Ele começa a pensar, e logo começa uma briga que se dá em sua mente, insuportável, 90% brigando contra 10%, a minoria argumentando com possibilidades e a maioria rebatendo com as conseqüências. A discussão é irritante, até o momento em que ele levanta a cabeça mais uma vez, para encarar nos olhos do gigante, com seus olhos de menino, tentando encontrar a coragem de ganhar a discussão. O menino então da sua cartada final, como um insight, em somente uma palavra: FODA-SE. Um grito desesperado de uma alma atormentada. Levanta os braços até a altura da barriga com um olhar nervoso, irado, FODA-SE, expressou-se em palavras e Kilian sabia exatamente o que queria dizer com isso, o gigante não tinha argumentos, o menino estava certo, pelo menos, para aquele gigante, o menino havia ganhado.

Kilian ri com a decisão, como um menino ri de uma piada velha. Olha mais uma vez para o espelho e pergunta - "Você está realmente certo disso?" Agora não há mais gigantes, agora a turma de crianças esta se reunindo e o sorriso matreiro de canto de boca, com a cabeça um pouco abaixada e um olhar penetrante falava por si só.

Um banho gelado de 5min floreado com pensamentos aleatórios, rápidos, fulminantes, cada seguido por um sonoro e libertador FODA-SE. Escovou os dentes, desarrumou os cabelos, deixou a barba por fazer, pegou as chaves de casa, não, as do carro não, pegou o dinheiro escondido para emergências na gaveta das cuecas, e saiu, saiu rumo ao objetivo do dia, seja qual for o objetivo de um menino querendo ser desbravador do mundo.

No hall a porta do elevador se abre e em sua frente seu companheiro matutino por 32 anos esta lá, mas agora não mais com olhos de gigante. Adentra ao cubículo ainda impaciente, ansioso, pressiona o botão para o térreo e espera em meio a tiques nervosos as portas se abrirem para cumprimentar o porteiro e seguir para a rua. Antes mesmo de abrir as portas da recepção lembra onde está, chuva, torrencial chuva de Seattle, e tenta lembrar o motivo pelo qual foi parar nesta cidade, mas não consegue chegar a nenhuma conclusão.

Vai até a beira da calçada sem um guarda-chuva, mas protegido pelo toldo do prédio, e ergue seu braço pedindo parada a um taxi. Dentro do taxi ouve a pergunta praxe "Para onde?". Kilian pensa por alguns segundos tentando convencer-se de que ainda está certo do que esta fazendo e diz às diretrizes que o levarão ao seu local de trabalho. O taxista é dos quietos, deixou o rapaz com barba por fazer, calças jeans surradas e camisa branca com sobretudo sozinho em seus temerosos pensamentos.

Olhando perdido para o horizonte chuvoso através da janela do carro Kilian esta longe, muito longe de Seattle quando ouve "15 dólares Sr." que são pagos prontamente. Adentra o edifício ao lado dos trabalhadores diários do local, todos engravatados, ternos Gucci, Armani, exatamente como ele deveria estar, mas não hoje. Hoje não chegou em sua mercedez SLR, não deixou as chaves com Titus como fez nos últimos 7 anos.

Irreconhecível, subiu ao 53º andar e foi direto a sala de seu chefe, mente clara como um dia perfeito inexistente em Seattle, em seu subconsciente, memórias de Tyler Durden conversando com o personagem sem nome de Edward Norton no filme que viu na noite anterior.

Passou pela secretária sem nem ao menos olhá-la, nada podia desviá-lo do que estava prestes a fazer, abriu e fechou a maciça porta de madeira de lei e, antes mesmo do “bom dia”, cuspiu palavras, "Senhor, agradeço a oportunidade de trabalhar em tão renomada empresa, mas chegou a hora de seguir meu rumo". Atônito, George olha para o calendário como se procurando saber se era 1º de abril e responde - "Como? Você vai nos deixar em momento tão vital? Você sabe da sua importância nesta empresa, não sabe? Recebeu alguma proposta melhor? Podemos conversar."


A única resposta possível na mente de Kilian saem de seus lábios com tamanha vontade de serem ditas, como se fosse isso que quisesse dizer a vida toda, falou rápido, como se quisesse dizer tudo de uma vez em uma fração de segundos, já conformado por saber que esqueceria de dizer algo. "George, com todo respeito, eu não me importo com a empresa, eu não me importo com você, eu me importo comigo. Eu não quero mais trabalhar aqui, ou em qualquer outro lugar, passar bem", virou-se, saiu, fechou a porta, respirou fundo e agora sorriu para a secretária de George, que sempre achou bonita, caminhou em direção a saída como se fosse campeão do mundo, como se nada o pudesse deter. Agora era somente ele, para ele, com ele, agora e depois. Livre enfim.

Kilian sai do prédio ainda protegido pelo toldo, olha para a rua procurando um taxi, mas não vê nenhum. Decide andar para a esquerda em meio à chuva, poderia ser à direita, foi à esquerda. Cada gota de chuva que ele sentia sobre seu corpo lavava uma parte do seu passado, quanto mais o sobretudo ficava encharcado e pesado, mais Kilian se sentia como o garoto de 12 anos sem preocupações que uma vez foi. Andava pela rua rindo, pensando somente no prazer de um banho de chuva, no final, pelo menos, Seattle foi generosa com ele e lhe poupou horas de consultas psiquiátricas, seu ser estava limpando-se a cada quadra.


Depois de andar a esmo Kilian lembrou-se do motivo de ter começado a andar em primeiro lugar quando avistou a distância um taxi aparentemente disponível. Pediu parada, entrou no taxi para mais uma vez ser inquirido sobre seu destino. Kilian ficou parado, calado, pensando – “e agora?” SNAP, “vamos para o aeroporto”.


Alguns minutos depois, Kilian encharcado chega ao aeroporto, se dirige ao primeiro balcão de companhia aérea que vê e pede uma passagem para o próximo vôo. A atendente parece não ter entendido direito e pergunta – “próximo vôo para aonde”, mas Kilian queria simplesmente a passagem para o próximo vôo, sem se importar para onde. Recebe sua passagem para Paris que sairia em 45min, decide então ir até o free-shop para comprar roupas secas, afinal, algo em torno de 17hs de vôo molhado iria cortar a emoção. Dentro do avião Kilian se acomoda pela primeira vez em muitos anos na classe econômica, a primeira classe ele já conhecia. Apertado, no meio de duas mulheres, Kilian sentia que as coisas na primeira classe não podiam estar tão boas, afinal, lá não estaria tão apertado. Encosta-se em seu assento, olha para o aviso de apertar cintos sobre sua cabeça e sabe que esta viagem será a viagem de sua vida, não esta até Paris, mas a viagem que começou hoje de manhã e, apertar os cintos, parecia a coisa certa a ser feita.

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